Arnon Grunberg
São Paulo Review,
2016-01-08
2016-01-08, São Paulo Review

Onde vivem os monstros


Sérgio Tavares

Tirza “é como um foguete pronto para o lançamento”. Um acontecimento literário de escala monumental e de irresistível atração.

Todo espaço paginado do romance do holandês Arnon Grunberg irradia uma eletricidade escura, descargas elevadas de expectativa e tensão. Há uma contagem regressiva que se inicia à medida que se avança a leitura; o dispositivo para uma fatalidade que, a qualquer momento, pode existir.

Jörgen Hofmeester é um sujeito devoto à aparência. Vive numa bela casa de dois andares num bairro nobre de Amsterdã. É casado e tem duas filhas: Tirza, a joia dos seus olhos, e Ibi, que mora na França. Trabalha, há mais de 30 anos, no setor de uma editora responsável por ficção estrangeira. Ama literatura russa e abastece uma conta corrente na Suíça. No ponto em que o livro começa, preocupa-se em “ser um anfitrião perfeito”.

O motivo são os preparativos para a festa de Tirza, que acaba de se graduar e partirá numa viagem por alguns países africanos, na companhia do novo namorado. Valendo-se do que aprendeu no curso “Faça seu próprio sushi e sashimi”, fatia os peixes e monta os aperitivos. Hofmeester treina várias vezes a maneira correta de carregar a travessa e servir. Checa a temperatura das bebidas, checa o relógio. Está arrumado antes de todos. Quer que os convidados o conheça como o pai de Tirza, que vão para casa pensando “que pai legal a Tirza tem”.

Ocorre que, na face interna dessa máscara de amabilidade, esconde-se uma violência reprimida, um descontrole prestes a romper a coleira; um tecido de seda, quase transparente, que faz as vezes de anteparo para um teatro doentio, de relações disfuncionais entre atores hostis.

À espera dos convidados, Hofmeester remonta passagens e traz a lume segredos e decisões que conduziram a todos da família ao desmoronamento velado. A tensão que envolve os afazeres da festa vai, pouco a pouco, curvando-se a uma tensão maior, que levará a um ponto irreversível de fratura.

O leitor vai descobrindo que, devido a um investimento errado, o dinheiro na Suíça se foi, de modo que Hofmeester passa a alugar o segundo andar da casa para locatários temporários, sobre os quais aplica pequenos esquemas para obter vantagens financeiras. A razão é o fato de ter sido demitido da editora, em função da sua incapacidade “de revelar um autor de peso”; circunstância que esconde da família, arrumando-se todos os dias e saindo para frequentar o salão de um aeroporto, onde gasta o tempo acenando para as pessoas que embarcam.

Em dado momento, usa Ibi, então uma adolescente, para coletar o aluguel. O choque causado pelo flagrante de uma cena envolvendo a filha mais velha e um locatário é a primeira mostra do animal oculto no “homem que se submetia a tudo de bom grado, que não protestava”. Como resultado ocorre a partida de Ibi, deixando-o mais disponível para Tirza, já que a própria esposa abandona, de tempo em tempo, a família, dizendo-se “em busca de autorrealização”.

Hofmeester, de fato, não se conturba. Sua atenção unilateral pertence a Tirza, pela qual desenvolve um comportamento obsessivo. Desde muito cedo fica fascinado pela beleza da menina e a trata como uma criança superdotada, ainda que nada aponte para isso. Lê para ela Dostoiévski, panfletando o benefício do niilismo em relação à vida; aplicando doses contumazes de pressão psicológica, que acaba por desencadear um distúrbio alimentar na filha.

A frequência difusa desse relacionamento deforma os valores e os estágios de sentimentos que configuram a convivência entre pai e filha, adulto e criança, por vezes colocando-os numa condição desconfortável de cúmplices. A esposa, cujo nome não é mencionado, enxerga com clareza o desajuste desse vínculo, contudo sua própria atitude maternal a inviabiliza de ter voz ativa.

No presente em que se passa a história, ela acaba de voltar para casa, depois de três anos ausente. As filhas não a suportam, em especial Tirza. O caso é que essa antipatia é mútua. Há algo de Medeia nos aspectos subjetivos que conformam a personagem. Ela mata as filhas, desprezando-as profundamente, e vinga-se do marido, desnudando-lhe do disfarce que mostra o quão patético ele é.

Descontando o irretocável trabalho de construção e desconstrução do protagonista, Grunberg alcança nos embates, nas pequenas guerras particulares entre Hofmeester e a esposa, os pontos de contundência do romance. A relação marido-mulher é dissecada pelas entranhas, por meio de diálogos de uma perversidade que não parece injusta a nenhum dos dois, uma alternância de repúdio, humilhação, acusação e, por fim, cumplicidade. São seres que tanto se repelem que se tocam pelas costas. Reféns de um casamento que, desvalido de qualquer emoção, ancora-se no conformismo. “Somos o que restou”, sentencia a esposa.

Na concepção de Hofmeester, no entanto, não há mal algum em se anular pelos filhos. “Sim, pelos filhos, você desiste da sua vida. Talvez seja essa a essência de se ser pai e mãe. O resto é secundário”. Realmente, em meio a uma variedade de assuntos e possibilidades de discussão aventadas pelo romance, o tema central é a paternidade; o dever de se apagar para iluminar uma parte desprendida de si, pela qual é preciso se contentar de que nunca voltará a ser sua.

Essa parte extraída de Hofmeester é Tirza, e sua incursão por caminhos sombrios decorre dessa percepção: a de que a figura de pai que criou para fingir seus fracassos já não é mais resistente, desabando no abismo íntimo de um vazio aterrador. Hofmeester suporta a presença pálida de Ibi, o comportamento vulgar da esposa, mas não a falta de controle sobre Tirza. Sobretudo quando esta lhe apresenta o novo namorado, que cisma ser a cópia fiel de Mohamed Atta, um dos terroristas que comandaram o plano de ataque ao World Trade Center em setembro de 2001.

Essa sombra que transborda para a superfície, durante o momento de separação que é a festa, trará consequências trágicas e um clima de devaneio e pesadelo para o terço final do livro, no qual se empreende uma busca em terra estrangeira. Grunberg desloca seu protagonista, um sujeito complexo, ambíguo e assustadoramente instável, para uma região marcada pela violência, pela miséria, pelas epidemias; vista, aos olhos ocidentais, como um arquétipo da maldade. O autor parece questionar se um monstro que transita pela terra de monstros talvez não possa ser considerado um monstro, afinal. Seja qual for a resposta, em Tirza o habitat dos monstros tem a extensão da compleição humana.