Arnon Grunberg
Rascunho,
2016-03-01
2016-03-01, Rascunho

As feridas de Grunberg


Vivian Schlesinger

Arnon Grunberg é um prolífico autor holandês de romances, contos, ensaios, peças teatrais, roteiros e artigos de jornal. Recebeu reconhecimento de público e crítica internacional desde muito cedo. Expressa suas opiniões sem rodeios e suas incertezas sem constrangimento. Seus romances contêm humor e um olhar que não se desvia mesmo diante dos piores pensamentos dos personagens, mas Grunberg revela empatia e preocupação pelo outro: “Se o autor tiver talento, a literatura pode ir a qualquer lugar, mas naturalmente talento consiste em também estar consciente das limitações do seu material”. Em entrevista concedida por e-mail ao Rascunho, Grunberg relata o que o levou à criação de Tirza, seu romance mais premiado, explica a importância do jornalismo literário em sua experiência, e o significado de fazer literatura.

• Em 2005, ao escrever Tirza, você era bem jovem, mas a tênue fronteira entre paternidade e obsessão é examinada a fundo a partir do ponto de vista de um homem que está envelhecendo. Onde se originou o material? Isso cresceu das suas experiências de imersão ou observação direta da vida ao seu redor? Nasci em 1971, portanto em 2005 eu tinha 34 anos. Um autor pode usar sua própria vida como material para seus romances, contos, poemas, peças de teatro. Naturalmente, é isso que a maioria dos autores faz. Mas você não precisa limitar-se às suas experiências. Eu sempre tentei, desde meu terceiro romance, Dor fantasma (Globo, 2005), escrever sobre personagens que têm óbvias semelhanças com minha própria vida. Escrevi sim sobre a relação pai-filho pela perspectiva de uma criança em 1994, em meu primeiro romance Amsterdã blues (Globo, 2002), e em Dor fantasma, no ano 2000, a perspectiva já é outra, é um pai que escreve, entre outras coisas, sobre seu filho, mas ser pai não é o mais importante nesse personagem. Ele é, no máximo, um pai fracassado. Em Tirza eu quis escrever sobre um homem que leva a paternidade a sério. Um homem para quem ser pai é o que dá valor à sua vida. Meu afilhado nasceu em 2004 em Nova York, onde moro, e passou as primeiras semanas de vida no meu apartamento. Isso pode ter ajudado minha criação de Hofmeester, mas não acho que foi isso que me levou a escrever Tirza.

• Hofmeester explode a um dado momento, e em retrospectiva, parece surpreender até ele mesmo que fosse capaz de tal violência. Mesmo assim, você deixa pistas pelo romance todo que há uma “fera” escondendo-se dentro dele. Ele é uma pessoa comum levada à violência pelo mundo insensível ao seu redor — o que significa que poderia teoricamente acontecer a qualquer um de nós — ou ele é do mal? Não, a maioria das pessoas é civilizada demais para ser capaz de usar violência. Por outro lado, a questão de sermos capazes de violência e em que momento iremos usá-la é uma das maiores questões, um dos maiores problemas de nossas sociedades. Eu diria que Hofmeester é uma pessoa comum, o que não significa que todos são capazes de tal violência. O que me interessou em Hofmeester foi se sua violência vem do amor, se o amor não foi a semente de sua violência. Não é fácil aceitar que o amor deve ter limites, que é possível amar em excesso. Não tenho certeza que alguém que cometeu um assassinato é do mal. Ele fez algo moralmente injustificável, isso é péssimo, em termos crassos, mas isso faz dele uma pessoa má? Na maior parte de sua vida, ele não foi mau.

• Você acredita que a confusão que Hofmeester faz entre o namorado marroquino de Tirza e Mohammed Atta seja interpretada de forma diferente agora, em 2016, do que era em 2005? Não, de maneira nenhuma. Claro que o 11 de Setembro está menos presente, mas há novos Mohammed Atta. Com isso, quero dizer que a tentativa de insistir que todos os muçulmanos ou imigrantes são terroristas intensificou-se. Se olho os Estados Unidos ou a Europa, esse é o caso, com certeza.

• A mãe em Tirza raramente é discutida, mas é uma personagem poderosa, multifacetada, que vai de inimiga a cúmplice do protagonista. Ela força seu retorno a casa, e o leitor aceita que Hofmeester é fraco demais para deter essa mãe egocêntrica, não convencional. Você acha que a anuência do leitor, produzida pela linguagem, também reflete uma definição atual mais flexível de família? A ficção pode influenciar nossa percepção de tendências contemporâneas? Não sei com certeza. Se aceitamos que o ser humano é imperfeito, deveríamos também aceitar que pais são imperfeitos, uns mais do que outros. Hofmeester pode ser fraco, fraco demais para opor resistência à sua ex-esposa. Não tenho certeza de que eu queria dizer algo sobre tendências da vida em família. Famílias são conceitos extremamente difíceis de união, precisamente porque não sentimos que fugir é impossível. Podemos fugir, e isso torna trágico o conceito de família. A mãe fugiu e volta porque se dá conta de que a fuga foi um erro.

• Quando esteve no Brasil, ao responder uma pergunta sobre a experiência de sua mãe no Holocausto, você disse que a lição mais importante que ela te ensinou foi que você deve sobreviver. É isso que Ibi, a filha mais velha, está fazendo, ao distanciar-se da família? De um certo modo, sim. Ibi é a sobrevivente.

• A família em Tirza é completamente deteriorada, mas aos poucos o narrador mostra falhas de caráter em cada um dos membros, inclusive em Tirza, que brinca com o ciúme do pai, contribuindo para o suspense quase insuportável do livro. Você partiu do enredo e então preencheu os detalhes nos personagens, ou o contrário? Nesse romance, comecei com o enredo, mas claro, o enredo é dirigido pelos personagens. Hofmeester já existia desde o começo. E também Tirza. Filhos conhecem bem as fraquezas de seus pais — o segredo obsceno é que mesmo dentro de quase todas as famílias, se não de todas, há competição. Mães competem com filhas, filhas flertam com pais. Eu quase diria que é natural.

• Como diz Humbert Humbert, de Nabokov, Você pode sempre contar com um assassino para uma prosa de estilo rebuscado. Hofmeester parece absolutamente sincero quando conta sua história para uma garotinha na Namíbia. Mesmo assim, o leitor percebe que há algo de terrível no ar, e que Hofmeester sabe o que é. Como funciona isso? Até certo ponto, Hofmeester acredita em suas próprias mentiras, todos acreditamos, você não precisa ser um assassino para ser um mentiroso sincero.

• Eu diria que a maioria das frases em seus romances inclui verbos de ação. A ação predomina. Ao mesmo tempo, aqui e ali há divagações de um tom quase filosófico, que pesam igualmente no total do personagem. Como você define quando dar voz ao pensamento do personagem? Em geral não quero meus personagens pensando muito: mesmo que tenham de pensar o tempo todo, não quero escrever sobre esse pensamento. O personagem deve aparecer através de seus atos ou diálogos, que no meu entender também é ação, mas auto-reflexão é uma tarefa difícil. A maioria dos personagens não está à altura. Mas o romance que estou escrevendo pode ser uma exceção.

• Você escolheu o deserto para reforçar a tensão, ou poderia ser uma metáfora para o isolamento, morte? O deserto, o deserto da Namíbia é mais do que uma metáfora para o isolamento, é isolamento e beleza, é a combinação da beleza, isolamento e perigo, o deserto pode ser tão sedutor que torna a morte uma opção encantadora.

• Olhando para trás, você vê padrões em seu trabalho que poderiam caracterizar um estilo? Provavelmente, mas descrever seu estilo não é tarefa para o autor.

• Você publicou Blauwe maandagen (Amsterdã blues, Globo, 2004) em 1994, muito antes da forte presença da autoficção. Você acha que é algo que passou, ou um fenômeno cíclico remontando, no mínimo, desde Proust? Provavelmente algo cíclico. A nossa vida pessoal é um grande material, o autor só precisa de distância e uma saudável aversão pela auto-censura.

• Quais os temas em jornalismo literário lhe interessam no momento? Há algum projeto de imersão programado para o futuro? Sim, entre outras coisas, vou tentar imersão com um circo dentro de alguns meses, e escrever uma peça sobre o futuro do sexo para uma companhia holandesa de teatro.

• Recentemente houve um artigo na The New Yorker sobre Mindwheel, o experimento de Robert Pinsky com jogos, nos anos oitenta. Na época, dava-se a isso o nome de ficção interativa. O seu interesse em desenvolver jogos teve alguma relação com o gênero? Um professor de literatura em Leiden, Países Baixos, disse que o futuro da literatura eram os jogos. Não tenho certeza se ele tinha — ou tem — razão, mas é algo que sem dúvida vale examinar. É por isso que desenvolvi o que se chama de jogo urbano no inverno passado, enquanto estive como professor honorário na Universidade de Amsterdã.

• Você já escreveu sobre uma grande variedade de temas, em diferentes gêneros e usando várias linguagens artísticas (literatura, jogos, poesia, peças de teatro). Quais são os maiores desafios de cada um? É difícil dizer. Eu me considero, antes de tudo, um romancista, e para o romancista o problema principal é superar-se, renovar-se para não ficar preso no mesmo lugar só porque esse lugar é tão cômodo. Fazer pesquisa, fazer jornalismo literário revelou-se, no meu caso, solo fértil para meus romances. E com as peças, você depende dos atores e diretores. Isso pode ser frustrante, mas também é parte da atração e do charme de escrever uma peça.

• O experimento com Het bestand foi uma tentativa de entender o processo criativo. O que você descobriu? Isso é algo que você deveria perguntar aos neurocientistas e eles ainda estão trabalhando nos resultados. Em outras palavras, seja paciente. [Enquanto escrevia o romance Het bestand (que significa o arquivo, mas ainda sem tradução) em seu apartamento, cientistas mediam sua atividade cerebral, suas emoções e sensações subjetivas. Usando exames de imagem e medidas fisiológicas como ECG, resposta galvânica da pele e EEG, e questionários subjetivos para o autor, pesquisadores correlacionaram a escrita de passagens de alta carga emocional à atividade fisiológica. A segunda fase do experimento ocorreu no Laboratório Grunberg na Universidade de Amsterdã, onde a atividade cerebral de voluntários era medida enquanto eles liam o romance em condições controladas.]

• Você menciona Isaac Babel com um de seus autores favoritos. Entre as características em comum, vocês compartilham a experiência jornalística e o fato que isso contribuiu de forma importante ao trabalho com ficção. Que outros traços comuns você vê? Vejo a melancolia, a violência, a melancolia da violência, e a violência da melancolia.

• O papel do romancista é o de segurar o espelho para a sociedade, ou a literatura só responde a si própria? Houellebecq disse que você deve colocar o dedo na ferida. Não sei se ele sempre coloca na ferida certa, mas em geral, ele tem razão. Você, o autor, deve procurar a ferida e cutucar bem aí.

• Seu trabalho recebeu importantes prêmios e reconhecimento pela forma de tratar de temas altamente sensíveis, como anorexia, incesto, herança nazista, etc. Você parece dedicar artesania considerável ao incluir humor ou violência no texto, em medida precisa. Há algum lugar onde a literatura não deva ir? Se o autor tiver talento, a literatura pode ir a qualquer lugar, mas naturalmente talento consiste em também estar consciente das limitações do seu material. No entanto, não há regras gerais.

• O politicamente correto exerce uma pressão confinadora sobre a criatividade? É mais presente agora do que no passado? Não sou de forma alguma contra o politicamente correto (p.c.). É algo que pode tornar-se extremo, mas o movimento contra o p.c. em geral é grosseiro e, às vezes mais, às vezes menos, abertamente racista. Ser humano significa também estar consciente das sensibilidades de outras pessoas. Um romance é um veículo complexo, diferente de um editorial — literatura e arte em geral existem, entre outras coisas, para brincar com tabus. Mas eu não sou confinado pelo p.c., e nas colunas que escrevo para um jornal holandês, procuro defender o p.c.

• Você ainda crê que “tudo é literatura, a busca da verdade”, como afirmou em uma entrevista há alguns anos? Sim, literatura busca a verdade, se não eu iria procurar outro trabalho. Não é só a verdade que a literatura busca, ou seria a filosofia, mas a verdade é importante.